A construção da identidade humana não é uma linha reta. Ela é uma tapeçaria delicada, entrelaçada por fios de memórias, afetos, verdades ditas e muitas vezes, também, por silêncios. Somos formados por aquilo que ouvimos sobre nós, pelas experiências que vivemos, e por tudo o que, com o tempo, escolhemos acreditar a nosso respeito. Mas… e quando aquilo que nos contaram não era bem assim? E quando a história que nos fundou carrega lacunas e mentiras? Mesmo que isso tenha sido feito por amor, segredos ou por medo? Quem somos nós, afinal, quando a história que nos deram começa a ruir?
A série Cartas do Passado, da Netflix, e o livro Cartas que escrevi antes de você nos colocam diante de uma ferida que muitos tentam esconder, mas que dói em silêncio: o impacto de não conhecer a própria origem. Essas obras não falam só de adoção ou de segredos familiares. Elas falam de pertencimento. De raiz. De identidade. E tocam, com delicadeza, o vazio que se instala quando uma pessoa não sabe ao certo de onde veio, ou quando descobre tarde demais que o que viveu foi, em partes, uma invenção.
Do ponto de vista psicológico, ninguém nasce sabendo quem é. Nós vamos nos tornando, nas relações com os outros, com a cultura, com as palavras que nos são ditas. Na infância, principalmente, é a família quem empresta esse espelho: “Você é assim. Você veio dali. Você pertence aqui.” Quando esse espelho é quebrado ou distorcido, quando a história contada omite pedaços importantes, algo dentro da gente desorganiza. Não é só a verdade que escapa. É a confiança, o chão, a coerência da própria existência.
Quando uma pessoa descobre que foi adotada ou que sua história foi escondida, ainda que por amor, o que acontece não é apenas uma revelação. É um abalo na estrutura de identidade. Uma pergunta inevitável surge, carregada de medo, raiva e tristeza: “Se não era verdade o que me contaram… então quem sou eu?” Essa não é uma dúvida intelectual. Ela dói no corpo, reverbera na memória, desestabiliza os afetos. Como se, de repente, tudo o que foi vivido ficasse em suspenso, pedindo para ser revisitado, reinterpretado, revivido com outros olhos.
E o mais difícil é que essa dor, muitas vezes, é invisível para o mundo. Há quem diga: “Mas você foi amado, teve tudo, por que mexer nisso agora?” Buscar saber de onde se veio não é ingratidão. É necessidade. É uma tentativa legítima de se reunir internamente. Não se trata de desvalorizar quem cuidou, mas de se reencontrar com partes de si que estavam desconhecidas, esquecidas, apagadas ou escondidas.
A ausência de verdade, especialmente quando sustentada por tanto tempo, pode gerar feridas profundas: dificuldade em confiar, medo de abandono, baixa autoestima, sensação de inadequação. Sem saber de onde veio, é difícil saber também para onde se vai. É como tentar caminhar no escuro, com um mapa desenhado por outras mãos, mãos que, talvez, tenham feito o melhor que podiam, mas que não conseguiram ser inteiramente honestas. A descoberta de que a mentira foi intencional. Mesmo que motivada por amor, ela fere. Porque fere a confiança. E a identidade não se sustenta sem confiança. Como construir uma base sólida num terreno onde a verdade foi enterrada?
Mas mesmo em meio ao caos, há possibilidade de reconstrução. A psicologia nos ensina que identidade não é um ponto fixo, ela é um processo. É um texto que pode ser reescrito, um quebra-cabeça cujas peças podem, aos poucos, encontrar novo encaixe. A verdade, mesmo que doa, também pode libertar. Ela permite que a pessoa saia do papel de espectadora da própria história e assuma seu lugar como autora. Escolhendo, com consciência, como quer continuar escrevendo a vida.
O processo terapêutico pode ser profundamente restaurador nesse caminho. Um lugar onde a dor encontra linguagem, onde o caos ganha sentido, onde o silêncio vira palavra e a palavra vira cura. Ali, o que estava fragmentado pode ser reorganizado com cuidado, com amor, com verdade. E a pessoa pode começar a se ver, não mais apenas como quem sofreu uma mentira, mas como quem tem poder para viver uma verdade nova.
A cura não está, necessariamente, em saber tudo. Às vezes, as perguntas ficarão sem resposta. Mas há paz possível, mesmo assim. Quando se aprende a acolher o que não pôde ser dito. Quando se transforma o silêncio em escuta. Quando se permite viver com inteireza, ainda que com cicatrizes.
Descobrir que a história que te contaram não era exatamente verdadeira pode, sim, ser devastador. Mas também pode ser o começo de uma jornada linda, honesta e corajosa: a de descobrir, enfim, quem você é, apesar de tudo.
Você não é só a história que te deram.
Você é, sobretudo, a história que você decide viver a partir daqui. Você é aquilo que escolhe preservar, curar e ressignificar em si.
