Quando o poder vira identidade: uma leitura psicológica de Os Donos do Jogo

“O que ‘Os Donos do Jogo’ revela sobre identidade, pertencimento e a busca por segurança emocional em uma sociedade líquida.”

A série Os Donos do Jogo, lançamento recente da Netflix, chega ao público com a força de quem não pretende apenas entreter: ela provoca, instiga e convida a uma reflexão muito mais ampla do que qualquer trama criminal poderia sugerir à primeira vista. Embora esteja ambientada no universo do jogo do bicho no Rio de Janeiro, a série extrapola a fronteira do crime organizado e se transforma em uma narrativa sobre poder, pertencimento, ambição e identidade, elementos que, de algum modo, atravessam todas as nossas histórias humanas. É justamente por isso que falar sobre ela é também falar sobre nós: sobre os fios invisíveis que nos constroem, sobre as forças que nos moldam e sobre os conflitos que definem quem somos e o que buscamos.

A trama gira em torno do Profeta, um jovem interpretado por André Lamoglia que enxerga no jogo do bicho uma oportunidade de ascensão, controle e reconhecimento. Ele não quer apenas entrar para o jogo: ele quer ser reconhecido e respeitado dentro daquele mundo. Quer ser visto. Quer ocupar um lugar que acredita merecer. E, quando olhamos por essa perspectiva, percebemos que sua jornada não difere tanto assim das nossas, ainda que nossas escolhas não estejam envolvidas em violência ou ilegalidade. Profeta está tentando responder a uma das perguntas mais universais da existência humana: onde é que eu pertenço? É essa busca, tão comum, tão profunda, tão silenciosamente presente em cada um de nós, que move a narrativa e que permite que, mesmo diante de um cenário sombrio, exista identificação. Porque o desejo de pertencer é ancestral. E a sensação de não ter um lugar é assombra a todos nós.

Ao longo da série, vemos que Profeta tenta conquistar sua posição dentro da chamada “Cúpula”, um espaço de poder regido por quatro famílias tradicionais. Essas famílias — Moraes, Guerra, Fernandez e Saad — formam um emaranhado complexo de alianças, rivalidades e códigos próprios, criando um ambiente que opera como um organismo vivo, cheio de tensões internas. Nada ali é apenas sobre dinheiro. Nada ali é apenas sobre controle. Cada gesto de fidelidade ou traição carrega memórias, traumas, heranças e medos que atravessam gerações. A série, assim, nos coloca diante de um fenômeno comum em estruturas familiares poderosas: a confusão entre vínculo e dever, entre afetos e obrigações, entre lealdade e submissão. E essa é uma das camadas mais fortes da história, porque revela algo profundamente humano: quando o poder entra na relação familiar, ele não vem sozinho, ele traz julgamentos, segredos, manipulações e disputas implícitas, todas mascaradas por discursos sobre “proteger os nossos”.

Esse é um ponto importante para entendermos por que Os Donos do Jogo vai além da ficção. Mesmo que os personagens não existam, a maneira como essas famílias funcionam lembra muito histórias reais do nosso país, especialmente quando falamos de grupos que criam seus próprios jeitos de viver, regras e formas de pertencer. Mas a série também se conecta com o que Bauman diz sobre a sociedade líquida: um tempo em que quase tudo é instável e muda rápido demais. E, quando o mundo parece escorrer pelos dedos, qualquer lugar que ofereça um pouco de firmeza se torna atraente. É isso que explica o fascínio de Profeta, mais do que o risco, o que o chama é a sensação de ter um lugar para ser alguém. Assim, a série mostra como certas estruturas ganham força justamente porque oferecem esse sentimento de porto seguro para quem está tentando se encontrar.

Do ponto de vista psicológico, isso nos leva a algo ainda mais profundo: a ambição como resposta à falta. Ninguém deseja poder apenas pelo poder; deseja porque, consciente ou inconscientemente, acredita que ele vai preencher um vazio. Profeta quer subir na hierarquia porque acredita que, ao fazê-lo, vai conquistar respeito, segurança, validação e, talvez, até amor. Ele quer deixar de ser invisível. E esse é um sentimento compartilhado por muitos: a crença de que a ascensão resolverá nossas dores mais antigas. Mas o poder raramente cura. No máximo, anestesia e, muitas vezes, apenas abre espaço para uma queda mais alta.

À medida que a série avança, percebemos que a violência presente no enredo não é apenas física. Existe também uma violência simbólica que atravessa todos os personagens: a pressão para manter aparências, a expectativa de lealdade irrestrita, os jogos emocionais silenciosos, a normalização do medo e o peso de decisões que ferem tanto quem as comete quanto quem as recebe. Ao observarmos esses processos, percebemos que a série não está falando apenas sobre crime organizado, mas sobre estruturas de poder em geral. Em qualquer espaço onde o poder se torna moeda, seja na política, na família, na igreja, nas empresas ou nos grupos sociais, começam a surgir os mesmos padrões: manipulação, disputa, medo, promessas vazias e, principalmente, a sensação de que para permanecer ali é preciso sacrificar algo de si.

Os Donos do Jogo escancara que esse sacrifício não é apenas moral ou ético; é emocional. Os personagens vão perdendo partes de si ao longo da história, e isso é muito simbólico do que acontece com qualquer pessoa que vive em ambientes de alto controle e baixa segurança emocional: para sobreviver, você se adapta; e, ao se adaptar demais, começa a se perder.

A série também destaca outro tema fundamental: a moralidade ambígua. Não há mocinhos ou vilões claramente definidos. Cada personagem é atravessado por dores, justificativas, traumas e necessidades que iluminam suas escolhas, mesmo as mais sombrias. Isso desconstrói a visão simplista de que o mal é óbvio e identificável. Na verdade, o mal se desenvolve em nuances, em pequenos acordos internos, em silêncios convenientes, em escolhas feitas para “proteger” algo maior que justificaria qualquer ação. Essa moralidade turva é desconfortável porque também nos convida a olhar para os espaços cinzentos da nossa vida: aquelas áreas onde justificamos atitudes por medo, carência ou lealdade.

Além disso, Os Donos do Jogo traz uma reflexão sobre como é viver em ambientes onde outras formas de poder acabam influenciando o dia a dia. Para quem faz parte desse universo, direta ou indiretamente, isso pode afetar emoções, escolhas e até a maneira como cada um se percebe. A série mostra, com delicadeza, como essas dinâmicas podem gerar inseguranças ou silêncios que se instalam aos poucos. E, para quem assiste de fora, ela funciona como um convite a entender como o contexto em que vivemos molda nossas atitudes e sentimentos, lembrando que todos nós somos impactados, de alguma forma, pelo mundo ao nosso redor.

Ao mesmo tempo, a produção tem relevância cultural porque dá visibilidade a uma história que faz parte da identidade brasileira, ainda que muitas vezes escondida. O jogo do bicho, apesar de ilegal, faz parte da cultura popular, das relações comunitárias, da memória afetiva de muitas regiões. Ele é contraditório: ao mesmo tempo que mantém uma economia paralela, também sustenta famílias, gera vínculos, cria redes de solidariedade. E é justamente essa complexidade que a série consegue representar: o crime não é romantizado, mas também não é reduzido a caricatura. Ele é mostrado como um fenômeno social, histórico e psicológico.

Dentro dessa costura narrativa, existe algo que chama atenção: a forma como o poder, quando obtido às pressas ou de forma violenta, exige um preço emocional altíssimo. Profeta, enquanto personagem, vai se debatendo entre a ambição de crescer e o medo de perder o que conquistou. E isso é profundamente humano. Todos nós, de alguma forma, já fomos capturados pela ilusão de que “ter mais” nos tornaria mais seguros ou mais amados. A psicologia mostra que esse é um mecanismo comum: quando crescemos sem validação suficiente, buscamos essa validação no reconhecimento externo. Mas reconhecimento externo é um terreno frágil. Ele nunca é garantido. Ele nunca é constante. Ele nunca é suficiente. E é nesse ciclo de buscar, conquistar e temer perder que muitos adoecem emocionalmente.

A série nos obriga a encarar esse dilema: até onde vamos por pertencimento? Até onde cedemos, negociamos ou machucamos a nós mesmos para sermos aceitos? E quanto do que chamamos de identidade é, na verdade, apenas a adaptação a um ambiente que exige mais do que podemos oferecer emocionalmente? Assistir Os Donos do Jogo pode despertar fascínio, repulsa, curiosidade, empatia ou até culpa. E todas essas emoções são válidas. Porque, no fundo, essa não é apenas uma série sobre o crime organizado; é sobre a fome de reconhecimento, sobre a necessidade de validação, sobre o peso das estruturas familiares e sobre a sedução do poder. É sobre como buscamos no mundo respostas para perguntas que muitas vezes só podem ser respondidas dentro de nós.

E talvez seja isso que faz com que essa série ressoe tanto: ela toca em feridas coletivas. Fala sobre hierarquias. Fala sobre controle. Fala sobre ausência. Fala sobre como tentamos nos proteger em ambientes hostis. E, principalmente, fala sobre como nossa identidade é construída a partir de memórias, rupturas e escolhas que carregam muito mais do que aquilo que mostramos.

Se você está assistindo à série e se percebe mexida, fisgada ou reflexiva, isso diz muito mais sobre você do que sobre a produção. Talvez porque alguma parte sua se reconheça na luta por pertencimento. Talvez porque, mesmo em universos diferentes, você entenda o que é negociar a própria essência para caber em um lugar. Talvez porque você sinta, como muitos sentem, que crescer emocionalmente é sempre um processo de questionar quais poderes internos e externos te governam.

E, se essa reflexão surgir, ela já vale mais do que qualquer episódio.

Com carinho da sua psi,
Tay <3

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